Referência: JAMA Pediatr. 2022 May 23 early online
Como qualquer pai exausto dirá, limitar o tempo de tela é uma fantasia hoje em dia, dada a onipresença das oportunidades de interação com as mídias. Enquanto a Academia Americana de Pediatria recomenda menos de duas horas por dia de tempo de tela, cada criança norte-americana gasta, em média, mais de sete. Some-se a isso o aumento exponencial das taxas de obesidade infantil, e parece que temos uma crise de saúde pública em mãos. Estudos anteriores não mostraram um efeito de se limitar o tempo de tela sobre a atividade física (um desfecho intermediário para a prevenção da obesidade), mas todos esses estudos apresentaram baixa adesão. Em um esforço para estudar a eficácia, ao invés da efetividade, da limitação do tempo de tela, um grupo de pesquisadores na Dinamarca projetou um estudo interessante que, essencialmente, tirou a adesão da equação.
O desenho do ensaio foi simples: eles recrutaram famílias na Dinamarca com: (a) pelo menos uma criança entre seis e dez anos que passava pelo menos 2,4 horas por dia em telas; e (b) um pai (ou mãe) que trabalhava ou estudava em tempo integral, e as randomizou para duas semanas sem seus telefones ou tablets (grupo de intervenção) ou permanecerem com seus modos habituais de vida (grupo de controle) e mediu sua atividade física e sono. Neste caso, um total de 89 famílias elegíveis (181 crianças e 164 adultos) foram incluídas depois de preencherem uma pesquisa sobre hábitos de uso de mídias que perguntava, no final, se elas estariam dispostas a "entregar seus telefones ou tablets se fossem alocadas ao grupo de intervenção" em troca de 75 dólares. Os participantes foram quase 100% brancos. As médias de idades foram de 8 a 9 anos para as crianças e 40 a 42 anos para os adultos. As crianças que participaram do estudo tiveram uma exposição a tempo de tela de 5 horas por dia.
Os resultados foram igualmente simples: houve um grande tamanho do efeito da intervenção entre as crianças (especialmente as dinamarquesas), mas não entre os adultos. O cumprimento da intervenção foi de 96% entre as famílias. Com base na análise por intenção de tratar, houve uma diferença de 45,8 minutos por dia entre os grupos na atividade física infantil (IC de 95%: 27,9 -63,6 minutos por dia a favor da intervenção; P < 0,001), mas não houve diferença na atividade física entre os adultos. Não houve diferenças significativas no sono entre as crianças ou os adultos.
A conclusão aqui também parece muito simples: se o celular não está disponível, você não pode usá-lo e, portanto, tem que fazer outra coisa. O mesmo princípio vale para cigarros, junk food e refrigerantes. É também por isso que basicamente todas as dietas e programas de exercícios têm demonstrado funcionar quando são postos em prática. E é a parte de "pôr em prática" que pega. Este ensaio faz o que se propôs a fazer — fornece fortes evidências de que uma redução real no tempo de tela (não apenas conselhos para reduzi-lo) está associada a um aumento da atividade física nas crianças (dinamarquesas). Curiosamente, os adultos pareceram substituir o tempo de tela por outras atividades sedentárias.
Nota de rodapé: quando lemos pela primeira vez o resumo e vimos as taxas de adesão de 97% nas crianças, a maioria de nós ficou perplexa e ansiosa para descobrir como esses pais foram capazes de impor limites ao tempo de tela. Um de nós (que não tem filhos, obviamente) respondeu "por que os pais simplesmente não levam os dispositivos para o trabalho?" Depois que o resto de nós parou de rir, nos debruçamos sobre o texto completo e descobrimos que os participantes tiveram seus dispositivos fisicamente removidos de casa como parte do protocolo de estudo. Eles literalmente "os entregaram". Por 75 dólares. Talvez seja verdade que os pais possam “simplesmente” tirar os dispositivos... se eles forem pagos para isso. Em suma, este estudo foi menos um tutorial sobre como limitar o tempo de tela na vida real do que um exemplo muito bom da diferença entre eficácia e efetividade. Em última análise, somos “material girls living in a material world”, e ainda precisamos descobrir como realmente fazer as pessoas desistirem de um pouco do tempo de tela e substituí-lo por atividade física. Mas pelo menos agora podemos ter mais certeza de que haverá alguma diferença se o fizermos.
Para mais informações veja o tópico Prevenção da Obesidade em Crianças e Adolescentes na DynaMed.
Equipe editorial do MBE em Foco da DynaMed
Este MBE em Foco foi escrito por Katharine DeGeorge, MD, MS, editora adjunta da DynaMed e professora associada de Medicina de Família na Universidade da Virgínia. Editado por Alan Ehrlich, MD, editor executivo da DynaMed e professor associado de Medicina de Família na faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts; Dan Randall, MD, editor adjunto da DynaMed; Carina Brown, MD, professora assistente na residência de Medicina de Família da Cone Health; Nicole Jensen, médica de família da WholeHealth Medical; Vincent Lemaitre, PhD, autor médico sênior na DynaMed; e Sarah Hill, MSc, editora associada da DynaMed. Traduzido para o português por Cauê Monaco, MD, MSc, professor do curso de medicina do Centro Universitário São Camilo.