Referência: Lancet Diabetes Endocrinol. 2025 Jan 14 early online
Conclusão prática: Em breve poderemos estar enxergando o diagnóstico da obesidade sob um novo paradigma que exija evidências de comprometimento clínico do funcionamento corporal, além do excesso de adiposidade, mesmo com um IMC "normal".
Pérola da MBE: A técnica Delphi é um método usado em vários cenários (economia, saúde, ciência) para se chegar de maneira sistemática a um consenso entre especialistas no campo que estiver sendo estudado. Ele usa respostas anônimas, estruturadas e iterativas a perguntas específicas visando a encontrar campos de concordância.
Os medicamentos antiobesidade estão em todos os noticiários hoje em dia e são cada vez mais considerados uma opção de tratamento em longo prazo para a doença crônica da obesidade. Para muitos profissionais que estão respondendo à enxurrada constante de mensagens sobre autorizações prévias, restrições de formulários e escassez nas farmácias, o cheiro de uso excessivo está se tornando mais forte a cada semana. Mas, se a obesidade é uma epidemia, como abordá-la por qualquer meio necessário pode ser considerado uso excessivo? Talvez o problema esteja em como atualmente definimos obesidade, que é simplesmente ter um IMC ≥ 30 kg/m2. Mas e se a estrutura conceitual sobre a qual nós (e a indústria farmacêutica) tivermos construído um império antiobesidade for defeituosa? Recomendações publicadas recentemente no Lancet por uma recém-criada Global Commission on Clinical Obesity propõem um sistema que utiliza tanto dados antropométricos quanto clínicos para separar as pessoas com IMC ou peso corporal elevados em subgrupos clínicos e pré-clínicos com base em novos critérios diagnósticos que incluem evidências objetivas de excesso de adiposidade (o que não necessariamente requer um IMC elevado) E evidências de comprometimento clínico do funcionamento corporal.
A comissão foi composta por 58 especialistas - alguns vivendo com obesidade - que representavam diferentes países e especialidades médicas. O painel foi sistematicamente pesquisado com o uso de uma técnica Delphi modificada, com um consenso unânime alcançado em 49 de 82 afirmações e um consenso quase unânime (> 90%) alcançado em 33 de 82 outras afirmações. Esses consensos resultaram na criação de critérios diagnósticos específicos para o diagnóstico de obesidade clínica em adultos, bem como em crianças e adolescentes.
A comissão reconhece que a obesidade é uma condição heterogénea com um espectro de fenótipos. Por exemplo, algumas pessoas com obesidade podem ter problemas de saúde e problemas clínicos devidos somente à obesidade, e algumas pessoas com IMC elevado podem ter funcionalidade e saúde normais durante toda a vida. O quadro proposto pela comissão distingue a obesidade, a obesidade clínica e a obesidade pré-clínica da seguinte forma:
- Obesidade: excesso de adiposidade somente, com ou sem comprometimento funcional resultante
- Obesidade clínica: excesso de adiposidade resultando em doença sistêmica crônica com disfunção tecidual ou orgânica, ou com limitações nas atividades da vida diária
- Obesidade pré-clínica: excesso de adiposidade com função preservada, mas com um risco geralmente maior de desenvolvimento de obesidade clínica e de outras comorbidades
Em poucas palavras, essa mudança não enfatiza o IMC e outros marcadores intermediários apenas, mas em vez disso se concentra nas evidências de disfunções relacionadas ao excesso de adiposidade, permitindo que a prevenção e o tratamento sejam focados nas obesidades pré-clínica e clínica, e não somente na obesidade em si.
Sabemos há muito tempo que o IMC é uma medida imperfeita - seu uso leva a um subdiagnóstico nas pessoas com obesidade sarcopênica (baixa massa muscular, mas alta adiposidade corporal), e a um sobrediagnóstico nas pessoas com corpos musculosos (fisiculturistas). Alguns puristas, no passado, propuseram o uso de medições da composição corporal para diagnosticar a obesidade, mas não existe um método de baixo custo universalmente recomendado para isso. Uma das vantagens desse método recém-proposto é que ele requer a avaliação do comprometimento funcional relacionado ao excesso de adiposidade por meio de critérios clínicos específicos e consistentes. Se usarmos o IMC como um teste de triagem inicial (para indivíduos não gestantes), três grupos de pessoas com IMC elevado podem surgir: atletas musculosos (baixa adiposidade e sem doença), aqueles com alta adiposidade e sem doença aparente (obesidade pré-clínica) e aqueles com alta adiposidade e doença (obesidade clínica). O diagnóstico baseado nessa recomendação de consenso é ao mesmo tempo sistemático e nuançado.
A proposta da comissão, se for adotada, poderá mudar radicalmente a forma como pensamos tanto as populações quanto os indivíduos no que diz respeito à obesidade. Teoricamente ela reduz o subdiagnóstico e o sobrediagnóstico da obesidade, nos permite direcionar melhor as medidas preventivas e terapêuticas e, por extensão, melhora potencialmente os desfechos populacionais. Esse novo modelo de definição de obesidade também pode servir como ponto de partida para reduzir o estigma experimentado por muitas pessoas em torno da obesidade, mudando o foco para o comprometimento clínico e para longe do próprio peso em si. Ah, e isso pode eventualmente levar a um uso mais criterioso e apropriado dos GLP-1s. Portanto, fique atento para observar se as principais organizações que lidam com obesidade adotam essas definições - porque quando definimos a obesidade com uma abordagem holística e diferenciada, podemos finalmente parar de deixar que ela nos defina.
Equipe editorial do MBE em Foco da DynaMed
Este MBE em Foco foi escrito por Katharine DeGeorge, MD, MSc, editora adjunta sênior da DynaMed e professora associada de Medicina de Família na Universidade da Virgínia. Editado por Alan Ehrlich, MD, FAAFP, editor executivo da DynaMed e professor associado de Medicina de Família na faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts; Dan Randall, MD, MPH, FACP, editor adjunto sênior da DynaMed; McKenzie Ferguson, PharmD, BCPS, redatora médica sênior da DynaMed; Rich Lamkin, MPH, MPAS, PA-C, redator médico da DynaMed; Matthew Lavoie, BA, revisor médico sênior da DynaMed; Hannah Ekeh, MA, editora associada sênior II da DynaMed; e Jennifer Wallace, BA, editora associada sênior da DynaMed. Traduzido para o português por Cauê Monaco, MD, MSc, docente do curso de medicina do Centro Universitário São Camilo.