Referência: JAMA. 2024 Apr 9; 331(14):1205-1214
Conclusão prática: É muito improvável que o uso do paracetamol durante a gravidez cause autismo, TDAH ou deficiência intelectual na criança.
Pérola da MBE: Encontrar uma associação em um estudo de coorte pode ser mais um sinal para a necessidade de mais pesquisas do que uma razão para mudar o tratamento.
Quando novas evidências resultam em uma mudança no tratamento de uma doença específica frequentemente se usa o conceito de um pêndulo em oscilação para explicar aos pacientes como, na realidade, é o corpo de evidências que está crescendo, e não que estejamos mudando de ideia a todo momento. Veja o caso do uso do acetaminofeno (paracetamol) durante a gestação. Por muitos anos dissemos que o paracetamol era perfeitamente seguro na gravidez. Então, por volta de 2017, dados de coortes sugeriram uma associação com TDAH, autismo e distúrbios do desenvolvimento em crianças expostas ao paracetamol durante a gestação. Curiosamente parece que um número maior de gestantes que de profissionais da saúde ficou sabendo dessa notícia (uma pista para as causas do atraso com que as evidências passam a ser colocadas em prática). Mas, agora, os autores de outro estudo de coorte recém-publicado no JAMA não encontraram tal associação e concluem que as descobertas anteriores foram devidas a fatores de confusão. Não é de se admirar que as pacientes estejam confusas e um tanto desconfiadas.
Esta coorte mais recente recrutou prospectivamente quase 2,5 milhões de crianças nascidas vivas de gestações únicas na Suécia de 1995 a 2019. Os pesquisadores coletaram informações de registros nacionais sobre os pais biológicos e seus filhos usando um identificador exclusivo para que pudessem conectar os pais com seus filhos e os filhos (irmãos) entre si. As informações incluíram os usos de paracetamol sem receita (OTC, over-the-counter) e sob prescrição, suas doses, e informações sobre diagnósticos médicos de enxaqueca, dor crônica, infecção, febre, artrite reumatóide e dores de cabeça de um ano antes da gestação até o parto. As razões para o uso OTC que não exigiram atenção médica não foram captadas. Os códigos da CID para autismo, TDAH e deficiência intelectual nos filhos foram o desfecho primário.
De acordo com este estudo, cerca de 7,5% das crianças foram expostas ao paracetamol durante a gestação. Essa porcentagem parece baixa, e é uma proporção menor do que a encontrada em alguns outros estudos. No entanto, os autores fizeram simulações e afirmam com base na estatística que, mesmo que a exposição ao paracetamol tenha sido sub-detectada, isso não teria mudado os resultados. A exposição ao paracetamol ocorreu com mais frequência nas mães com status socioeconômico mais baixo, IMC mais alto, aquelas que fumaram durante a gravidez, tinham quaisquer condições psiquiátricas ou do neurodesenvolvimento, e aquelas que tinham indicações para tomar paracetamol. Cerca de 7,6% das crianças incluídas foram diagnosticadas com pelo menos uma afecção neuropsiquiátrica -especificamente autismo, TDAH ou deficiência intelectual.
Na amostra de base populacional (todos os dados), foram encontradas associações pequenas, mas significativas, entre qualquer exposição a paracetamol durante a gestação e autismo, TDAH e deficiência intelectual, semelhantes aos dados da coorte anterior. No entanto, as diferenças absolutas foram incrivelmente pequenas. Além disso, e muito importantemente, nenhuma associação significativa foi encontrada em uma análise de controle entre irmãos. A coorte de controle pelos irmãos controlou para fatores como status socioeconômico dos pais biológicos, predisposições genéticas, IMC, tabagismo ou outros possíveis fatores de confusão não identificados. A remoção desses fatores removeu a diferença significativa entre os grupos, o que sugere que o nexo causal não é o paracetamol, mas provavelmente um, ou uma combinação, desses outros fatores.
Então, como costuramos esses dados em um tecido que mantenha nossas pacientes grávidas (e a nós mesmos) aquecidas? O corpo de evidências está realmente crescendo, mas há dores no crescimento. Começamos procurando danos fetais por meio de análises observacionais retrospectivas e não encontramos nenhum - foi assim que o paracetamol obteve a categoria A para a gestação, agora aposentada. Em seguida, começaram a surgir estudos de coorte que identificaram uma associação entre uso de paracetamol na gravidez e autismo, TDAH e deficiência intelectual. O problema é que a grande maioria dos consumidores dessa informação a considerou uma associação causal. O que esta análise mais recente entre irmãos nos diz é que os estudos anteriores realmente acertaram - há uma associação, mas provavelmente não é entre o paracetamol e essas condições neuropsiquiátricas. Em vez disso, são as razões subjacentes a tomar paracetamol que estão associadas a autismo, TDAH e deficiência intelectual. E é isso que podemos dizer às nossas pacientes - não que o pêndulo tenha oscilado ou que tenhamos mudado de ideia sobre se o paracetamol é seguro na gravidez, mas que os pesquisadores seguiram os rastros das evidências e cada vez nos aproximaram mais da "verdade".
Para mais informações veja o tópico Medicamentos e exposição a medicamentos na gravidez na DynaMed.
Equipe editorial do MBE em Foco da DynaMed
Este MBE em Foco foi escrito por Katharine DeGeorge, MD, MSc, editora-adjunta sênior da DynaMed e professora associada de Medicina de Família na Universidade da Virgínia. Editado por Alan Ehrlich, MD, FAAFP, editor executivo da DynaMed e professor associado de Medicina de Família na faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts; Dan Randall, MD, MPH, FACP, editor adjunto da DynaMed; Nicole Jensen, MD, médica de família na WholeHealth Medical; Vincent Lemaitre, PhD, editor médico da DynaMed; Hannah Ekeh, MA, editora associada sênior da DynaMed; e Jennifer Wallace, BA, editora associada sênior da DynaMed. Traduzido para o português por Cauê Monaco, MD, MSc, docente do curso de medicina do Centro Universitário São Camilo.