Quando o que deveria funcionar não funciona: linfadenectomia de rotina não melhora sobrevida geral no câncer de ovário avançado

MBE em Foco - Volume 6 Issue 2

Referência: N Engl J Med 2019 Feb 28;380(9):822 (level 2 [mid-level] evidence)

Muito do que é ensinado na faculdade de medicina provém de princípios fisiopatológicos sobre o que deveria funcionar, com base nos fatos já conhecidos. A medicina moderna, no entanto, nos permitiu ligar alguns desses pontos a ensaios que testem essas hipóteses. Quando a evidência não se alinha ao que esperamos encontrar com base na fisiopatologia, às vezes é mais fácil encontrar falhas nos dados do que reformular o nosso pensamento. Baseada no trabalho de John Meigs, a abordagem fisiopatologica do tratamento dos tumores epiteliais de ovário inclui a cirurgia redutora, com a resecção de todo o tumor macroscopicamente visível. O câncer de ovário pode se disseminar por via linfática, com até 50% dos pacientes tendo metástases, independentemente da presença ou não de linfonodos macroscopicamente acometidos à avaliação intraoperatória. Assim, uma abordagem de tratamento baseada na patologia levaria à lógica de se realizar a linfadenectomia padrão em todos os tumores, independentemente da presença ou não de linfonodos acometidos, uma vez que já se constatou que a máxima redução melhora a sobrevida geral e a sobrevida livre de progressão da doença.

Um recente ensaio randomizado multicêntrico, aberto, com sigilo da alocação, comparou a realização de linfadenectomia à sua não realização entre mulheres com cânceres epiteliais de ovário dos estádios IIb a IV. Mais de 600 mulheres foram incluídas, com uma idade média de 60 anos mais, e 75% com doença de estádio IIIB ou mais alto. Todas as mulheres foram submetidas a cirurgias redutoras, e as mulheres com linfonodos clinicamente acometidos ou doença macroscopicamente residual foram excluídas do ensaio. À análise por intenção de tratar, não houve diferença na sobrevida global (69,2 meses no grupo sem linfadenectomia versus 65,5 meses no grupo submetido a linfadenectomia) ou na sobrevida livre de doença. As pacientes submetidas a linfadenectomia tiveram tempos de cirurgia maiores em uma hora, e maiores taxas de repetição da laparotomia, necessidade de transfusão, internação em unidade de terapia intensiva e mortalidade dentro de 60 dias após a cirurgia. Não houve diferença nas medidas de qualidade de vida entre os grupos.

Para os médicos treinados sob o modelo flexneriano de educação médica, orientado pelas práticas baseadas na ciência patológica, os achados deste ensaio fazem pouco sentido. A minimização da doença residual melhora a sobrevida. Após o trabalho de Meigs e os ensaios iniciais do Gynecology Oncology Group, constatou-se que os linfonodos abrigam uma quantidade significativa da doença. A sua remoção deveria, pela teoria biológica, melhorar os desfechos. No entanto, agora dois ensaios prospectivos não evidenciaram melhora na sobrevida global com a linfadenectomia de rotina comparada à ausência de linfadenectomia (Panici et al 2005).

Esses achados são outro lembrete de que a educação médica precisa evoluir, muito ao longo das linhas traçadas por Shaughnessy e Slawson. Os modelos baseados na patologia fornecem o contexto, mas é o ensino baseado nas probabilidades sobre o que já se demonstrou ser efetivo que se traduz em melhores desfechos para o paciente. Além disso, esse ensaio destaca a importância de se focar nos desfechos orientados para o paciente, tais como a sobrevida global, em comparação à sobrevida livre de doença, um desfecho cheio de vies e erros de aferição. A prática da medicina exige que os médicos aprendam a se adaptar com base na melhor evidência disponível que demonstre melhoras em desfechos orientados para os pacientes.

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